A moral primária dos autoritários consagrou o “Quem não deve, não teme” como máxima da ideia de honradez na política.
legitimou, com isso, o vale-tudo de quem detinha o poder de bisbilhotar e que passou a fazê-lo, agora, alegando elevadas razões para devassar a vida alheia e, com isso, ganhar poder de vida e de morte sobre os cidadãos da República.
O resultado está aí, no dado estarrecedor publicado pela Folha de S. Paulo: 600 mil dossiês sobre movimentações bancárias, envolvendo 186 mil empresas e 412 mil pessoas físicas, nos últimos três anos. Muitas mais seriam se o período fosse de cinco anos, mais ou menos o tempo em que os neoarapongas da moralidade perderam todos os freios e se entronizaram como “paladinos da moralidade”.
A questão está mal posta, tanto que muitos reclamam apenas que isso tenha ido às mãos do presidente do Supremo. É absurdo consequente, pois o absurdo essencial é que, antes dele, uma súcia de burocratas – fossem da Receita ou do MP – pudessem ter acesso a isso, talvez com a simplicidade com que se aperta um botão.
Ficamos sabendo disso – aí está a ironia com que a História de move – porque atingiu um dos filhos presidenciais e por ele – sim, apenas por ele – interrompeu-se a devassa sobre a vida alheia.
Não há nenhum problema em quebras de sigilo bancário – e já disse aqui que penso que este sigilo nem se justifica no caso de empresas, que não têm intimidades a preservar – mas é preciso que, como manda a lei, isso seja feito de forma fundamentada e razoável, com a atribuição de responsabilidades claras pela decisão: a ordem judicial, como sempre foi na história do Direito brasileiro.
Quem quiser procurar o marco histórico de onde isso se perdeu não terá muito trabalho. Leiam os diálogos obtidos pelo The Intercept e vejam como se tornou informal a bisbilhotice, a “pescaria” nas contas bancárias de algo que servisse para incriminar os alvos de Moro et caterva, transformando o Banco Central e a Receita em “bagrinhos” dos xerifes curitibanos.
É, aliás, a inevitável consequência desta deformação bélico-fascista de “forças-tarefas”, algo que dissolve a institucionalidade ao juntar funções republicanas distintas num “comando”, onde os freios e independências saem para dar origem à formação de uma expedição de caça a serviço dos imperadores da Justiça.
Viraram cães mandados a farejar suspeitas, perdendo todos limites, como ilustra o imundo diálogo entre os procuradores Januário Paludo, Deltan Dallagnol, Julio Noronha e Robertson Pozzobon, referindo-se a Roberto Leonel, servidor da Receita e, com Moro, chefe do Coaf:
Januário – 13:30:02 Dona Marisa [Leticia, mulher de Lula, morta em 2017] comprou árvores e plantas no Ceagesp em dinheiro para o sítio com um cara chamado […]
13:31:46 Pedi para o Leonel ver ser tem nf [nota fiscal].
Roberson – 13:38:56 Shoooou[…]
Deltan – 15:53:20 Vcs checaram o IR de Maradona [apelido do caseiro do sítio de Atibaia, Elcio Pereira Vieira] ? Não me surpreenderia se ele fosse funcionário fantasma de algum órgão público
15:53:24 (comissionado)
Júlio – 15:55:00 Não olhamos… Vou colocar na lista de pendências
Deltan – 15:56:32 Pede pro Roberto Leonel dar uma olhada informal
Júlio – 15:56:39 Ok!
Como se vê, a distância entre “Força Tarefa” e quadrilha sequer existe.
Não se diga que o fim desta promiscuidade vai proteger Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz, sua “Ponte da Laranja” com rachadinhas e milícias.
Não é o sigilo bancário que impediu o Ministério Público, quase um ano depois, de trazer Queiroz a um simples depoimento, muito menos de pedir legalmente acesso às suas transações. Ao contrário, é o avanço “informal” sobre ele que fragiliza a investigação e, tal como ocorre agora, coloca em risco a apuração da verdade.
O Brasil tem bons mecanismos de controles de atividades financeiras, que nunca foram sequer tocados pelos governos de esquerda. E tem porque a ideia sempre foi a de que -exceto sob o aspeto fiscal – era de que existissem como simples registros, sem nenhuma ação investigatória, exceto a de ser material para esta quando feita por quem de direito – polícia ou MP – e cumprida a exigência legal de que fossem acessados com ordem judicial fundamentada.
As garantias dos cidadãos nunca é inimiga da verdade, pois elas apenas exigem um rito para que possam ser superadas pelo devido processo legal, exceto no que são pétreas. Mas o arbítrio, o atropelo, o exercício arbitrário do poder de investigar, este sim é o esterco que aduba o autoritarismo e faz com que os tolos digam que “quem não deve, não teme”, até que se inverta a ideia essencial de que é culpa e não a inocência o que tem de ser provado.
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